A música na caminhada do povo de Deus
Na Bíblia, existem mais de seiscentas referências ao canto e à música. Do primeiro livro, o Gênesis, que se inicia justamente com um canto à Criação (Gn 1), ao último, o Livro do Apocalipse, que aparece como o desenrolar de uma esplêndida e majestosa liturgia, a música, o canto, a festa, parecem ser não apenas fonte inesgotável de energia para os que estão a caminho, mas a tônica dominante da própria realidade definitiva, que chamamos Reino de Deus.
A importância da música na História de Israel
O povo de Israel nasceu numa encruzilhada de culturas e civilizações. Como a Bíblia que esse povo vai escrevendo, também sua música, seu canto, carregam as marcas desse entrelaçamento cultural. Para se ter uma idéia, aproximadamente no ano 1000 antes de Cristo, sob o reinado de Davi, é que se formou uma tradição musical com identidade definida. Sua expressão é a coletânea dos Salmos. Entre todos os cânticos do Primeiro Testamento, sobressai o Cântico de Moisés e Minam (Ex 15), celebrando a esplendorosa intervenção do Deus Libertador, quando da passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho; este cântico teve importância relevante na tradição litúrgica Judeu-cristã.
A essa expressão épica da fé pascal vem se ajuntar, qual maravilhoso contraponto, o Cântico dos Cânticos, poema de amor, expressão lírica da fé de Israel, que brota de uma rica experiência do amor conjugal, carregada de sensualidade e ternura, uma faísca do Senhor. (Ct 8,6), capaz de nos transportar à intimidade mesma do amor divino.
Os relatos das Liturgias do templo deixam transparecer a alegria contagiante e o júbilo, nascido da exuberância da fé, na qual as aclamações, a música, o canto, a dança, são elementos constitutivos e eminentes da celebração da fé de um povo (1Cr 15,16; Ne 12,27- 43).
Mas são os Salmos, sobretudo, o registro mais significativo da experiência de um povo a traduzir sua vida e sua fé em música, canto e dança. Eles são o convite mais sugestivo a celebrar a vida e a fé de nossos pais, eles são o coração palpitante de toda a Bíblia. Os salmos foram o livro de canto do Povo de Israel, de Maria, de Jesus de Nazaré, dos Apóstolos, da Igreja nascente e continuam sendo, séculos afora, até hoje, o repertório elementar da celebração cristã. Todo aquele que lida com música litúrgica cristã encontra necessariamente, no Livro dos Salmos, o seu primeiro referencial.
A música na comunidade cristã primitiva
Enraizados numa tradição mais que milenar, os protagonistas do Novo testamento, Maria, José, Jesus e os Discípulos, a comunidade Cristã primitiva, são pessoas que continuam a celebrar sua fé cantando e exultando de alegria. É assim que os salmos tão frequentemente se encontram nos lábios de Jesus e são o livro do Primeiro Testamento mais citado nos livros do Novo.
Se começarmos a percorrer os Evangelhos, especialmente o de Lucas, que forneceu as referências elementares para a constituição do Ano Litúrgico, e avançarmos pelas Cartas de Paulo até chegarmos ao Apocalipse de João, logo nos surpreenderemos com a abundância e a beleza de textos poéticos. Estes, com certeza provieram da rica experiência litúrgico-musical das primeiras comunidades e marcaram significativa presença na tradição litúrgica da Igreja até hoje, tanto na Liturgia das Horas quanto na celebração da Ceia do Senhor e dos demais Sacramentos: As bem-aventuranças; três Cânticos de Lucas, marcam o ponto culminante do louvor no Oficio da Manhã (Cântico De Zacarias Lc 1,68-79), da Tarde (Cântico de Maria Lc 1,46-55) e da Noite (Cântico de Simeão Lc 2,29-32); Não podemos esquecer o cântico angélico do Glória (Lc 2,14), que originou a grande doxologia da missa; O Prólogo de João (Jo 1, 1-8), que celebra a nova Criação em Jesus Cristo; Numerosos hinos paulinos, como os dois cristológicos (FI 2,6-11; lTm 6,15-16); o hino batismal de Pedro (1Pd 2,2 1-25); os hinos e aclamações, que ocorrem a cada passo na liturgia celeste descrita no Apocalipse e são sem dúvida, como que um “retrato cantado” das celebrações das comunidades joaninas.
A constância do canto de louvor na comunidade primitiva fica bem refletida na insistente recomendação de Paulo na generosa resposta das primeiras comunidades, que tão bem a concretizaram: “Juntos recitem salmos, hinos e cânticos inspirados, cantando e louvando ao Senhor de todo o coração. Agradeçam sempre a Deus Pai por todas as coisas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5, 19-20; cf Cl 3,16). Esta é uma regra neotestamentária para o canto e a música.
É curioso perceber que, na Igreja primitiva, há uma preponderância da música vocal, da palavra e do ensino da música instrumental. Não há o suporte de instrumentos aos salmos, uma ruptura completa com o paganismo, cujo uso dos instrumentos adornava os cultos idolátricos. Por essa razão, o fato de se falar em instrumentos estava muito mais ligado ao templo escatológico e à dimensão unicamente espiritual dos fiéis.
A música litúrgica na Igreja dos primeiros séculos
No ano 112 da era cristã, um autor latino, Plinio, o Jovem, em sua famosa Carta ao Imperador Trajano, assim se expressava a respeito dos cristãos: “Eles se reúnem antes do amanhecer e cantam a Cristo, a quem consideram como deus.” Em meados do século II, Justino, Mártir (+165), em sua apologia dirigida ao Imperador Antonino Pio, sublinha a excelência do louvor e do canto dos cristãos, comparados aos sacrificios pagãos.
Mais adiante, lá pelo final do século III, início do IV, Eusébio de Cesaréia (+339), comentando os salmos, dá conta de que, “através do mundo inteiro, em todas as Igrejas de Deus, tanto nas cidades como no interior e no campo, os povos de Cristo, reunidos de todas as gentes, cantam hinos e salmos (..) ao único Deus anunciado pelos profetas, em alta voz, de tal maneira que o som do canto pode ser escutado até por aqueles que estão fora do templo”.
E como é edificante escutar João Crisóstomo (+407), em homilia na igreja de Santo Irineu, em Constantinopla, exaltar a nobreza dos cristãos a transparecer do próprio canto unânime da assembléia: “O salmo que acabamos de cantar fundiu as vozes e fez subir um só canto, plenamente harmonioso: jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e homens, escravos e livres, todos não usaram senão de única voz. (..) Juntos, não formamos senão um coro, numa total igualdade de direito e de expressão, pelo que a terra imita o céu. Tal é a nobreza da Igreja”.
Mas é sobretudo em Milão, com o Santo Bispo Ambrósio (+397), e a seguir em Hipona, norte da África, com seu discípulo Agostinho (+ 430), que nós vamos conhecer, quem sabe, um primeiro ensaio de Pastoral da música litúrgica. Segundo Santo Agostinho, poucas coisas são tão próprias para estimular a piedade nas almas e inflamá-las com o fogo do amor divino como o canto. Dos seis primeiros séculos da nossa Igreja, época marcada pela atuação dos chamados Pais e Mães da Igreja, ou a época patrística, podemos afirmar, de modo geral, que o canto litúrgico é exaltado com inumeráveis referências bíblicas. E canto que reconhece e acolhe os valores humanos e psicológicos do cantar do povo: extravasamento saudável de emoções, comunhão de sentimentos e ideais, a alegria da festa. Os Pais e Mães da Igreja põem em evidência os valores celebrativos do reunir-se em coro para cantar: serviço da Palavra, unanimidade que manifesta a unidade em Cristo, sacrificio espiritual, profecia do reino, comunhão com os coros dos anjos e antecipação escatológica. Algo que nos parece muito atual é o fato de os Pais e Mães da Igreja falarem da música com uma visão ampla e articulada, acolhendo as diversas experiências existentes, numa prática celebrativa não distante da vida do povo e ainda não encurralada por regras ou normas intocáveis, como mais adiante acontecerá. As formas musicais desenvolvidas nesse período foram a salmodia e os hinos.
Para São Basílio (+379), no salmo, a melodia é uma espécie de mel que Deus juntou ao medicamento (as suas palavras), para torná-lo mais fácil de tomar.
O canto gera comunhão e harmoniza as diferenças: “restabelece a amizade, reúne os que estavam desavindos, converte em amigos os que mutuamente se hostilizavam. Quem será ainda capaz de considerar como inimigo aquele a quem elevou uma só voz para Deus?” (Basílio de Cesaréia)
No Pseudo-Dionísio encontramos também um ensinamento que diz que o canto põe os seres em sintonia, formando uma só assembléia de santos, onde o uníssono das vozes reflete nos corações. Gregório de Nazianzo diz que o canto dos salmos converte as horas em momentos de verdadeiro prazer espiritual. E Atanásio diz que este é um instrumento de conversão e elevação espiritual.
Nos séculos IV e V, época áurea da Igreja, surgem as “Scholae cantorum”. Até aqui, em cada ambiente eclesial consolida-se um mundo celebrativo próprio, em sintonia com a cultura local sempre aberto ao intercâmbio com experiências mais diversas. É o triunfo do pluralismo litúrgico-musical ainda aceito e respeitado pela Igreja de Roma. Um outro fator determinante de dinamismo foram a expansão missionária e o florescimento monástico.
No entanto, com o passar do tempo, nota-se que algo essencial vai sendo deixado de lado: a participação e envolvimento da assembléia. Vai se aprimorando a especialização teológico-bíblica dos compiladores de textos, a gestualidade dos ministros, a afinação dos membros das “scholae”. Cultura e música elitistas passam a ocupar e dominar o espaço do litúrgico, em detrimento da participação do povo.
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