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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Mensagem do papa Bento XVI para o 44º Dia Mundial da Paz 2011

1º DE JANEIRO DE 2011



Liberdade religiosa, caminho para a paz



1. NO INÍCIO DE UM ANO NOVO, desejo fazer chegar a todos e cada um os meus votos: votos de serenidade e prosperidade, mas sobretudo votos de paz. Infelizmente também o ano que encerra as portas esteve marcado pela perseguição, pela discriminação, por terríveis atos de violência e de intolerância religiosa.

Penso, em particular, na amada terra do Iraque, que, no seu caminho para a desejada estabilidade e reconciliação, continua a ser cenário de violências e atentados. Recordo as recentes tribulações da comunidade cristã, e de modo especial o vil ataque contra a catedral siro-católica de «Nossa Senhora do Perpétuo Socorro» em Bagdá, onde, no passado dia 31 de Outubro, foram assassinados dois sacerdotes e mais de cinquenta fiéis, quando se encontravam reunidos para a celebração da Santa Missa. A este ataque seguiram-se outros nos dias sucessivos, inclusive contra casas privadas, gerando medo na comunidade cristã e o desejo, por parte de muitos dos seus membros, de emigrar à procura de melhores condições de vida. Manifesto-lhes a minha solidariedade e a da Igreja inteira, sentimento que ainda recentemente teve uma concreta expressão na Assembleia Especial para o Médio Oriente do Sínodo dos Bispos, a qual encorajou as comunidades católicas no Iraque e em todo o Médio Oriente a viverem a comunhão e continuarem a oferecer um decidido testemunho de fé naquelas terras.

Agradeço vivamente aos governos que se esforçam por aliviar os sofrimentos destes irmãos em humanidade e convido os católicos a orarem pelos seus irmãos na fé que padecem violências e intolerâncias e a serem solidários com eles. Neste contexto, achei particularmente oportuno partilhar com todos vós algumas reflexões sobre a liberdade religiosa, caminho para a paz. De fato, é doloroso constatar que, em algumas regiões do mundo, não é possível professar e exprimir livremente a própria religião sem pôr em risco a vida e a liberdade pessoal. Noutras regiões, há formas mais silenciosas e sofisticadas de preconceito e oposição contra os crentes e os símbolos religiosos. Os cristãos são, atualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé. Muitos suportam diariamente ofensas e vivem frequentemente em sobressalto por causa da sua procura da verdade, da sua fé em Jesus Cristo e do seu apelo sincero para que seja reconhecida a liberdade religiosa. Não se pode aceitar nada disto, porque constitui uma ofensa a Deus e à dignidade humana; além disso, é uma ameaça à segurança e à paz e impede a realização de um desenvolvimento humano autêntico e integral.

De fato, na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela, pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana.

Por isso, exorto os homens e mulheres de boa vontade a renovarem o seu compromisso pela construção de um mundo onde todos sejam livres para professar a sua própria religião ou a sua fé e viver o seu amor a Deus com todo o coração, toda a alma e toda a mente (cf. Mt 22, 37). Este é o sentimento que inspira e guia a Mensagem para o XLIV Dia Mundial da Paz, dedicada ao tema: Liberdade religiosa, caminho para a paz.

Direito sagrado à vida e a uma vida espiritual

2. O direito à liberdade religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana, cuja natureza transcendente não deve ser ignorada ou negligenciada. Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27). Por isso, toda a pessoa é titular do direito sagrado a uma vida íntegra, mesmo do ponto de vista espiritual. Sem o reconhecimento do próprio ser espiritual, sem a abertura ao transcendente, a pessoa humana retrai-se sobre si mesma, não consegue encontrar resposta para as perguntas do seu coração sobre o sentido da vida e dotar-se de valores e princípios éticos duradouros, nem consegue sequer experimentar uma liberdade autêntica e desenvolver uma sociedade justa.

A Sagrada Escritura, em sintonia com a nossa própria experiência, revela o valor profundo da dignidade humana: «Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes, que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do homem para dele Vos ocupardes? Fizestes dele quase um ser divino, de honra e glória o coroastes; destes-lhe poder sobre a obra das vossas mãos, tudo submetestes a seus pés» (Sl 8, 4-7).

Perante a sublime realidade da natureza humana, podemos experimentar a mesma admiração expressa pelo salmista. Esta se manifesta como abertura ao Mistério, como capacidade de interrogar-se profundamente sobre si mesmo e sobre a origem do universo, como íntima ressonância do Amor supremo de Deus, princípio e fim de todas as coisas, de cada pessoa e dos povos. A dignidade transcendente da pessoa é um valor essencial da sabedoria judaico-cristã, mas, graças à razão, pode ser reconhecida por todos. Esta dignidade, entendida como capacidade de transcender a própria materialidade e buscar a verdade, há de ser reconhecida como um bem universal, indispensável na construção duma sociedade orientada para a realização e a plenitude do homem. O respeito de elementos essenciais da dignidade do homem, tais como o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, é uma condição da legitimidade moral de toda a norma social e jurídica.

Liberdade religiosa e respeito recíproco

3.A liberdade religiosa está na origem da liberdade moral. Com efeito, a abertura à verdade e ao bem, a abertura a Deus, radicada na natureza humana, confere plena dignidade a cada um dos seres humanos e é garante do respeito pleno e recíproco entre as pessoas. Por conseguinte, a liberdade religiosa deve ser entendida não só como imunidade da coação mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as próprias opções segundo a verdade.

Existe uma ligação indivisível entre liberdade e respeito; de fato, «cada homem e cada grupo social estão moralmente obrigados, no exercício dos próprios direitos, a ter em conta os direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem comum».

Uma liberdade hostil ou indiferente a Deus acaba por se negar a si mesma e não garante o pleno respeito do outro. Uma vontade, que se crê radicalmente incapaz de procurar a verdade e o bem, não tem outras razões objetivas nem outros motivos para agir senão os impostos pelos seus interesses momentâneos e contingentes, não tem uma «identidade» a preservar e construir através de opções verdadeiramente livres e conscientes. Mas assim não pode reclamar o respeito por parte de outras «vontades», também estas desligadas do próprio ser mais profundo e capazes, por conseguinte, de fazer valer outras «razões» ou mesmo nenhuma «razão». A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma pacífica convivência é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos. Por isso se compreende a necessidade de reconhecer uma dupla dimensão na unidade da pessoa humana: a religiosa e a social. A este respeito, é inconcebível que os crentes «tenham de suprimir uma parte de si mesmos - a sua fé - para serem cidadãos ativos; nunca deveria ser necessário renegar a Deus, para se poder gozar dos próprios direitos».

A família, escola de liberdade e de paz

4.Se a liberdade religiosa é caminho para a paz, a educação religiosa é estrada privilegiada para habilitar as novas gerações a reconhecerem no outro o seu próprio irmão e a sua própria irmã, com quem caminhar juntos e colaborar para que todos se sintam membros vivos de uma mesma família humana, da qual ninguém deve ser excluído.

A família fundada sobre o matrimônio, expressão de união íntima e de complementaridade entre um homem e uma mulher, insere-se neste contexto como a primeira escola de formação e de crescimento social, cultural, moral e espiritual dos filhos, que deveriam encontrar sempre no pai e na mãe as primeiras testemunhas de uma vida orientada para a busca da verdade e para o amor de Deus. Os próprios pais deveriam ser sempre livres para transmitir, sem constrições e responsavelmente, o próprio patrimônio de fé, de valores e de cultura aos filhos. A família, primeira célula da sociedade humana, permanece o âmbito primário de formação para relações harmoniosas a todos os níveis de convivência humana, nacional e internacional. Esta é a estrada que se há de sapientemente percorrer para a construção de um tecido social robusto e solidário, para preparar os jovens à assunção das próprias responsabilidades na vida, numa sociedade livre, num espírito de compreensão e de paz.

Um patrimônio comum

5.Poder-se-ia dizer que, entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa, a liberdade religiosa goza de um estatuto especial. Quando se reconhece a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente, acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a reta ordem social construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem.

Neste sentido, a liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda a pessoa deve poder exercer livremente o direito de professar e manifestar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir a outra religião ou não professar religião alguma. Neste âmbito, revela-se emblemático e é uma referência essencial para os Estados o ordenamento internacional, enquanto não consente alguma derrogação da liberdade religiosa, salvo a legítima exigência da justa ordem pública. Deste modo, o ordenamento internacional reconhece aos direitos de natureza religiosa o mesmo status do direito à vida e à liberdade pessoal, comprovando a sua pertença ao núcleo essencial dos direitos do homem, àqueles direitos universais e naturais que a lei humana não pode jamais negar.

A liberdade religiosa não é patrimônio exclusivo dos crentes, mas da família inteira dos povos da terra. É elemento imprescindível de um Estado de direito; não pode ser negada, sem ao mesmo tempo minar todos os direitos e as liberdades fundamentais, pois é a sua síntese e ápice. É «o papel de tornassol para verificar o respeito de todos os outros direitos humanos». Ao mesmo tempo que favorece o exercício das faculdades humanas mais específicas, cria as premissas necessárias para a realização de um desenvolvimento integral, que diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em cada uma das suas dimensões.

A dimensão pública da religião

6.Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa - como qualquer outra liberdade - realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade, coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da religião.

O relacionamento é uma componente decisiva da liberdade religiosa, que impele as comunidades dos crentes a praticarem a solidariedade em prol do bem comum. Cada pessoa permanece única e irrepetível e, ao mesmo tempo, completa-se e realiza-se plenamente nesta dimensão comunitária.

Inegável é a contribuição que as religiões prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou proibida, mas vista como válida ajuda para a promoção do bem comum. Nesta perspectiva, é preciso mencionar a dimensão religiosa da cultura, tecida através dos séculos graças às contribuições sociais e sobretudo éticas da religião. Tal dimensão não constitui de modo algum uma discriminação daqueles que não partilham a sua crença, mas antes reforça a coesão social, a integração e a solidariedade.

Liberdade religiosa, força de liberdade e de civilização: os perigos da sua instrumentalização

7.A instrumentalização da liberdade religiosa para mascarar interesses ocultos, como por exemplo a subversão da ordem constituída, a apropriação de recursos ou a manutenção do poder por parte de um grupo, pode provocar danos enormes às sociedades. O fanatismo, o fundamentalismo, as práticas contrárias à dignidade humana não se podem jamais justificar, e menos ainda o podem ser se realizadas em nome da religião. A profissão de uma religião não pode ser instrumentalizada, nem imposta pela força. Por isso, é necessário que os Estados e as várias comunidades humanas nunca se esqueçam que a liberdade religiosa é condição para a busca da verdade e que a verdade não se impõe pela violência mas pela «força da própria verdade». Neste sentido, a religião é uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política.

Como se pode negar a contribuição das grandes religiões do mundo para o desenvolvimento da civilização? A busca sincera de Deus levou a um respeito maior da dignidade do homem. As comunidades cristãs, com o seu patrimônio de valores e princípios, contribuíram imenso para a tomada de consciência das pessoas e dos povos a respeito da sua própria identidade e dignidade, bem como para a conquista de instituições democráticas e para a afirmação dos direitos do homem e seus correlativos deveres.

Também hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados - não só através de um responsável empenhamento civil, econômico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé - a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do reto ordenamento das realidades humanas. A exclusão da religião da vida pública subtrai a esta um espaço vital que abre para a transcendência. Sem esta experiência primária, revela-se uma tarefa árdua orientar as sociedades para princípios éticos universais e torna-se difícil estabelecer ordenamentos nacionais e internacionais nos quais os direitos e as liberdades fundamentais possam ser plenamente reconhecidos e realizados, como se propõem os objetivos - infelizmente ainda menosprezados ou contestados - da Declaração Universal dos direitos do homem de 1948.

Uma questão de justiça e de civilização: o fundamentalismo e a hostilidade contra os crentes prejudicam a laicidade positiva dos Estados

8.A mesma determinação, com que são condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel público dos crentes na vida civil e política.

Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio de laicidade. De fato, ambas absolutizam uma visão redutiva e parcial da pessoa humana, favorecendo formas, no primeiro caso, de integralismo religioso e, no segundo, de racionalismo. A sociedade, que quer impor ou, ao contrário, negar a religião por meio da violência, é injusta para com a pessoa e para com Deus, mas também para consigo mesma. Deus chama a Si a humanidade através de um desígnio de amor, o qual, ao mesmo tempo que implica a pessoa inteira na sua dimensão natural e espiritual, exige que lhe corresponda em termos de liberdade e de responsabilidade, com todo o coração e com todo o próprio ser, individual e comunitário. Sendo assim, também a sociedade, enquanto expressão da pessoa e do conjunto das suas dimensões constitutivas, deve viver e organizar-se de modo a favorecer a sua abertura à transcendência. Por isso mesmo, as leis e as instituições duma sociedade não podem ser configuradas ignorando a dimensão religiosa dos cidadãos ou de modo que prescindam completamente da mesma; mas devem ser comensuradas - através da obra democrática de cidadãos conscientes da sua alta vocação - ao ser da pessoa, para o poderem favorecer na sua dimensão religiosa. Não sendo esta uma criação do Estado, não pode ser manipulada, antes deve contar com o seu reconhecimento e respeito.

O ordenamento jurídico a todos os níveis, nacional e internacional, quando consente ou tolera o fanatismo religioso ou anti-religioso, falta à sua própria missão, que consiste em tutelar e promover a justiça e o direito de cada um. Tais realidades não podem ser deixadas à mercê do arbítrio do legislador ou da maioria, porque, como já ensinava Cícero, a justiça consiste em algo mais do que um mero ato produtivo da lei e da sua aplicação. A justiça implica reconhecer a cada um a sua dignidade, a qual, sem liberdade religiosa garantida e vivida na sua essência, fica mutilada e ofendida, exposta ao risco de cair sob o predomínio dos ídolos, de bens relativos transformados em absolutos. Tudo isto expõe a sociedade ao risco de totalitarismos políticos e ideológicos, que enfatizam o poder público, ao mesmo tempo que são mortificadas e coarctadas, como se lhe fizessem concorrência, as liberdades de consciência, de pensamento e de religião.

Diálogo entre instituições civis e religiosas

9.O patrimônio de princípios e valores expressos por uma religiosidade autêntica é uma riqueza para os povos e respectivas índoles: fala diretamente à consciência e à razão dos homens e mulheres, lembra o imperativo da conversão moral, motiva para aperfeiçoar a prática das virtudes e aproximar-se amistosamente um do outro sob o signo da fraternidade, como membros da grande família humana.

No respeito da laicidade positiva das instituições estatais, a dimensão pública da religião deve ser sempre reconhecida. Para isso, um diálogo sadio entre as instituições civis e as religiosas é fundamental para o desenvolvimento integral da pessoa humana e da harmonia da sociedade.

Viver no amor e na verdade

10.No mundo globalizado, caracterizado por sociedades sempre mais multiétnicas e pluriconfessionais, as grandes religiões podem constituir um fator importante de unidade e paz para a família humana. Com base nas suas próprias convicções religiosas e na busca racional do bem comum, os seus membros são chamados a viver responsavelmente o próprio compromisso num contexto de liberdade religiosa. Nas variadas culturas religiosas, enquanto há que rejeitar tudo aquilo que é contra a dignidade do homem e da mulher, é preciso, ao contrário, valer-se daquilo que resulta positivo para a convivência civil.

O espaço público, que a comunidade internacional torna disponível para as religiões e para a sua proposta de «vida boa», favorece o aparecimento de uma medida compartilhável de verdade e de bem e ainda de um consenso moral, que são fundamentais para uma convivência justa e pacífica. Os líderes das grandes religiões, pela sua função, influência e autoridade nas respectivas comunidades, são os primeiros a ser chamados ao respeito recíproco e ao diálogo.

Os cristãos, por sua vez, são solicitados pela sua própria fé em Deus, Pai do Senhor Jesus Cristo, a viver como irmãos que se encontram na Igreja e colaboram para a edificação de um mundo, onde as pessoas e os povos «não mais praticarão o mal nem a destruição (…), porque o conhecimento do Senhor encherá a terra, como as águas enchem o leito do mar» (Is 11, 9).

Diálogo como busca em comum

11.Para a Igreja, o diálogo entre os membros de diversas religiões constitui um instrumento importante para colaborar com todas as comunidades religiosas para o bem comum. A própria Igreja nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. «Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens».

A estrada indicada não é a do relativismo nem do sincretismo religioso. De fato, a Igreja «anuncia, e tem mesmo a obrigação de anunciar incessantemente Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo 14, 6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo mesmo todas as coisas». Todavia isto não exclui o diálogo e a busca comum da verdade em diversos âmbitos vitais, porque, como diz uma expressão usada frequentemente por São Tomás de Aquino, «toda a verdade, independentemente de quem a diga, provém do Espírito Santo».

Em 2011, tem lugar o 25º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz, que o Venerável Papa João Paulo II convocou em Assis em 1986. Naquela ocasião, os líderes das grandes religiões do mundo deram testemunho da religião como sendo um fator de união e paz, e não de divisão e conflito. A recordação daquela experiência é motivo de esperança para um futuro onde todos os crentes se sintam e se tornem autenticamente obreiros de justiça e de paz.

Verdade moral na política e na diplomacia

12.A política e a diplomacia deveriam olhar para o patrimônio moral e espiritual oferecido pelas grandes religiões do mundo, para reconhecer e afirmar verdades, princípios e valores universais que não podem ser negados sem, com os mesmos, negar-se a dignidade da pessoa humana. Mas, em termos práticos, que significa promover a verdade moral no mundo da política e da diplomacia? Quer dizer agir de maneira responsável com base no conhecimento objetivo e integral dos fatos; quer dizer desmantelar ideologias políticas que acabam por suplantar a verdade e a dignidade humana e pretendem promover pseudo-valores com o pretexto da paz, do desenvolvimento e dos direitos humanos; quer dizer favorecer um empenho constante de fundar a lei positiva sobre os princípios da lei natural. Tudo isto é necessário e coerente com o respeito da dignidade e do valor da pessoa humana, sancionado pelos povos da terra na Carta da Organização das Nações Unidas de 1945, que apresenta valores e princípios morais universais de referência para as normas, as instituições, os sistemas de convivência a nível nacional e internacional.

Para além do ódio e do preconceito

13.Não obstante os ensinamentos da história e o compromisso dos Estados, das organizações internacionais a nível mundial e local, das organizações não governamentais e de todos os homens e mulheres de boa vontade que cada dia se empenham pela tutela dos direitos e das liberdades fundamentais, ainda hoje no mundo se registram perseguições, descriminações, atos de violência e de intolerância baseados na religião. De modo particular na Ásia e na África, as principais vítimas são os membros das minorias religiosas, a quem é impedido de professar livremente a própria religião ou mudar para outra, através da intimidação e da violação dos direitos, das liberdades fundamentais e dos bens essenciais, chegando até à privação da liberdade pessoal ou da própria vida.

Temos depois, como já disse, formas mais sofisticadas de hostilidade contra a religião, que nos países ocidentais se exprimem por vezes com a renegação da própria história e dos símbolos religiosos nos quais se refletem a identidade e a cultura da maioria dos cidadãos. Frequentemente tais formas fomentam o ódio e o preconceito e não são coerentes com uma visão serena e equilibrada do pluralismo e da laicidade das instituições, sem contar que as novas gerações correm o risco de não entrar em contacto com o precioso patrimônio espiritual dos seus países.

A defesa da religião passa pela defesa dos direitos e liberdades das comunidades religiosas. Assim, os líderes das grandes religiões do mundo e os responsáveis das nações renovem o compromisso pela promoção e a tutela da liberdade religiosa, em particular pela defesa das minorias religiosas; estas não constituem uma ameaça contra a identidade da maioria, antes, pelo contrário, são uma oportunidade para o diálogo e o mútuo enriquecimento cultural. A sua defesa representa a maneira ideal para consolidar o espírito de benevolência, abertura e reciprocidade com que se há de tutelar os direitos e as liberdades fundamentais em todas as áreas e regiões do mundo.

Liberdade religiosa no mundo

14.Dirijo-me, por fim, às comunidades cristãs que sofrem perseguições, discriminações, atos de violência e intolerância, particularmente na Ásia, na África, no Médio Oriente e de modo especial na Terra Santa, lugar escolhido e abençoado por Deus. Ao mesmo tempo que lhes renovo a expressão do meu afeto paterno e asseguro a minha oração, peço a todos os responsáveis que intervenham prontamente para pôr fim a toda a violência contra os cristãos que habitam naquelas regiões. Que os discípulos de Cristo não desanimem com as presentes adversidades, porque o testemunho do Evangelho é e será sempre sinal de contradição.

Meditemos no nosso coração as palavras do Senhor Jesus: «Felizes os que choram, porque hão-se ser consolados. (…) Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. (…) Felizes sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentido, vos acusarem de toda a espécie de mal. Alegrai-vos e exultai, pois é grande nos Céus a vossa recompensa» (Mt 5, 4-12). Por isso, renovemos «o compromisso por nós assumido no sentido da indulgência e do perdão - que invocamos de Deus para nós, no “Pai Nosso” - por havermos posto, nós próprios, a condição e a medida da desejada misericórdia: “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”(Mt 6, 12)». A violência não se vence com a violência. O nosso grito de dor seja sempre acompanhado pela fé, pela esperança e pelo testemunho do amor de Deus. Faço votos também de que cessem no Ocidente, especialmente na Europa, a hostilidade e os preconceitos contra os cristãos pelo fato de estes pretenderem orientar a própria vida de modo coerente com os valores e os princípios expressos no Evangelho. Mais ainda, que a Europa saiba reconciliar-se com as próprias raízes cristãs, que são fundamentais para compreender o papel que teve, tem e pretende ter na história; saberá assim experimentar justiça, concórdia e paz, cultivando um diálogo sincero com todos os povos.

Liberdade religiosa, caminho para a paz

15.O mundo tem necessidade de Deus; tem necessidade de valores éticos e espirituais, universais e compartilhados, e a religião pode oferecer uma contribuição preciosa na sua busca, para a construção de uma ordem social justa e pacífica a nível nacional e internacional.

A paz é um dom de Deus e, ao mesmo tempo, um projeto a realizar, nunca totalmente cumprido. Uma sociedade reconciliada com Deus está mais perto da paz, que não é simples ausência de guerra, nem mero fruto do predomínio militar ou econômico, e menos ainda de astúcias enganadoras ou de hábeis manipulações. Pelo contrário, a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa e povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada. Convido todos aqueles que desejam tornar-se obreiros de paz e sobretudo os jovens a prestarem ouvidos à própria voz interior, para encontrar em Deus a referência estável para a conquista de uma liberdade autêntica, a força inesgotável para orientar o mundo com um espírito novo, capaz de não repetir os erros do passado. Como ensina o Servo de Deus Papa Paulo VI, a cuja sabedoria e clarividência se deve a instituição do Dia Mundial da Paz, «é preciso, antes de mais nada, proporcionar à Paz outras armas, que não aquelas que se destinam a matar e a exterminar a humanidade. São necessárias sobretudo as armas morais, que dão força e prestígio ao direito internacional; aquela arma, em primeiro lugar, da observância dos pactos».A liberdade religiosa é uma autêntica arma da paz, com uma missão histórica e profética. De fato, ela valoriza e faz frutificar as qualidades e potencialidades mais profundas da pessoa humana, capazes de mudar e tornar melhor o mundo; consente alimentar a esperança num futuro de justiça e de paz, mesmo diante das graves injustiças e das misérias materiais e morais. Que todos os homens e as sociedades aos diversos níveis e nos vários ângulos da terra possam brevemente experimentar a liberdade religiosa, caminho para a paz!



Vaticano, 8 de Dezembro de 2010.

BENEDICTUS PP XVI

Fonte: Assessoria de Imprensa
CNBB


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Formação Litúrgica: Música Litúrgica III

A música litúrgica na Igreja da época romano-franca e romano-germânica

No que diz respeito ao canto litúrgico, o período que vai de Gregório Magno (+604) até Gregório VII (+1085) é período de complicadíssimas elaborações musicais. Gregório Magno dá toda a importância às “scholae cantorun”: estas se situam entre o presbitério e o povo (=ponte entre os fiéis e o sacerdote).

Tal situação da Igreja romana suscita admiração e imitação em toda a Igreja do século V ao VIII. A Igreja de Roma conheceu seu período de maior riqueza, de amadurecimento das formas expressivas, sua “época clássica”. Como conseqüência, se dá o processo de romanização das antigas liturgias locais.

É importante frisar que, nesse período:

O canto litúrgico se toma especialidade de clérigos e monges;

• O Canto Gregoriano expande-se silenciando outras “vozes” (com exceção do canto ambrosiano);

• Com isso, não se quer desmerecer o valor intrínseco e inestimável do canto gregoriano. De fato, trata-se de acervo artístico e espiritual de imenso valor, que não pode ser desperdiçado, mas que, por suas características peculiares, não poderia ser proposto incondicionalmente ao conjunto das comunidades cristãs hoje em dia.

A música litúrgica na época que vai de Gregório VII (+1085) ao Concílio de Trento (1545)

Surge o previsível: a liturgia vai entrando em crise cada vez mais grave e prolongada vasta documentação assinala a celebração em decadência, realizada mais por dever do que por vocação eclesial; mais pelo repertório a ser executado do que por inspiração; mais pela burocracia do culto do que pela ação coral do povo; mais pela dramaturgia do que pelo mistério participado...

Depois do gregoriano, surge a polifonia. Esta privilegia a arte refinada na mistura dos timbres e harmonias, no jogo rítmico, na colaboração de profissionais da composição para diversas vozes, tornando as músicas mais estéticas do que litúrgicas. Embora tenham surgido obras primas da época alguns cronistas tradicionais classificavam algumas execuções como intoleráveis.

A música litúrgica do Concílio de Trento ao século XIX

Após o Concílio de Trento, surge o período artístico do Barroco: o sentimento de segurança nas declarações da Igreja romana dá a sensação de se pisar em solo firme, depois da crise protestante.

Não podemos negar o “casamento” da música barroca com a liturgia, nem suas coerências com a concepção de uma ordem monárquica hierárquica exemplar: Deus, os chefes, os reis, o clero, o povo.., assim, nas igrejas, chefe do coro e organista poderão e deverão pontificar, mais do que o presidente da celebração. O órgão será o rei dos instrumentos (expressão sonora dos atributos de Deus (onipotência, onisciência e onipresença) e até concorrente do altar. A linguagem melódica terá tal eloquência, que tornará acessível ao povo a própria língua latina, o jogo alternativo, o contraste do timbre, o tecido feito de contrapontos, estarão em condições de expressar, mais do que um pregador, o sentido da festa!

Mas no século XVIII, sentia-se na Igreja um desejo de maior participação comunitária, de mais simplicidade.

A música litúrgica em pleno Movimento Litúrgico

O século XIX foi bastante marcado pela oposição contra a música profana e o estilo teatral, oriundos do barroco. Surge então, em Solesmes, a reforma da música sacra como um dos objetivos prioritários deste século. Era o Movimento Litúrgico. Um retomo às fontes e retomada do fervor litúrgico, que veio desaguar, um século mais adiante, no Concílio Vaticano II.

Caminhando de mãos dadas juntamente com o Movimento Bíblico e o Movimento Ecumênico, sob o impulso das inovadoras e preciosas diretrizes do Papa Pio XII em suas encíclicas “Mediator Dei” (1947) e “Musicae Sacrae” (1955), e das reformas que “implementou em vista de favorecer a participação ativa e consciente” do povo na liturgia: uma antecipação do Vaticano II.


Formação Litúrgica: Música Litúrgica II

A música na caminhada do povo de Deus

Na Bíblia, existem mais de seiscentas referências ao canto e à música. Do primeiro livro, o Gênesis, que se inicia justamente com um canto à Criação (Gn 1), ao último, o Livro do Apocalipse, que aparece como o desenrolar de uma esplêndida e majestosa liturgia, a música, o canto, a festa, parecem ser não apenas fonte inesgotável de energia para os que estão a caminho, mas a tônica dominante da própria realidade definitiva, que chamamos Reino de Deus.

A importância da música na História de Israel

O povo de Israel nasceu numa encruzilhada de culturas e civilizações. Como a Bíblia que esse povo vai escrevendo, também sua música, seu canto, carregam as marcas desse entrelaçamento cultural. Para se ter uma idéia, aproximadamente no ano 1000 antes de Cristo, sob o reinado de Davi, é que se formou uma tradição musical com identidade definida. Sua expressão é a coletânea dos Salmos. Entre todos os cânticos do Primeiro Testamento, sobressai o Cântico de Moisés e Minam (Ex 15), celebrando a esplendorosa intervenção do Deus Libertador, quando da passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho; este cântico teve importância relevante na tradição litúrgica Judeu-cristã.

A essa expressão épica da fé pascal vem se ajuntar, qual maravilhoso contraponto, o Cântico dos Cânticos, poema de amor, expressão lírica da fé de Israel, que brota de uma rica experiência do amor conjugal, carregada de sensualidade e ternura, uma faísca do Senhor. (Ct 8,6), capaz de nos transportar à intimidade mesma do amor divino.

Os relatos das Liturgias do templo deixam transparecer a alegria contagiante e o júbilo, nascido da exuberância da fé, na qual as aclamações, a música, o canto, a dança, são elementos constitutivos e eminentes da celebração da fé de um povo (1Cr 15,16; Ne 12,27- 43).

Mas são os Salmos, sobretudo, o registro mais significativo da experiência de um povo a traduzir sua vida e sua fé em música, canto e dança. Eles são o convite mais sugestivo a celebrar a vida e a fé de nossos pais, eles são o coração palpitante de toda a Bíblia. Os salmos foram o livro de canto do Povo de Israel, de Maria, de Jesus de Nazaré, dos Apóstolos, da Igreja nascente e continuam sendo, séculos afora, até hoje, o repertório elementar da celebração cristã. Todo aquele que lida com música litúrgica cristã encontra necessariamente, no Livro dos Salmos, o seu primeiro referencial.

A música na comunidade cristã primitiva

Enraizados numa tradição mais que milenar, os protagonistas do Novo testamento, Maria, José, Jesus e os Discípulos, a comunidade Cristã primitiva, são pessoas que continuam a celebrar sua fé cantando e exultando de alegria. É assim que os salmos tão frequentemente se encontram nos lábios de Jesus e são o livro do Primeiro Testamento mais citado nos livros do Novo.

Se começarmos a percorrer os Evangelhos, especialmente o de Lucas, que forneceu as referências elementares para a constituição do Ano Litúrgico, e avançarmos pelas Cartas de Paulo até chegarmos ao Apocalipse de João, logo nos surpreenderemos com a abundância e a beleza de textos poéticos. Estes, com certeza provieram da rica experiência litúrgico-musical das primeiras comunidades e marcaram significativa presença na tradição litúrgica da Igreja até hoje, tanto na Liturgia das Horas quanto na celebração da Ceia do Senhor e dos demais Sacramentos: As bem-aventuranças; três Cânticos de Lucas, marcam o ponto culminante do louvor no Oficio da Manhã (Cântico De Zacarias Lc 1,68-79), da Tarde (Cântico de Maria Lc 1,46-55) e da Noite (Cântico de Simeão Lc 2,29-32); Não podemos esquecer o cântico angélico do Glória (Lc 2,14), que originou a grande doxologia da missa; O Prólogo de João (Jo 1, 1-8), que celebra a nova Criação em Jesus Cristo; Numerosos hinos paulinos, como os dois cristológicos (FI 2,6-11; lTm 6,15-16); o hino batismal de Pedro (1Pd 2,2 1-25); os hinos e aclamações, que ocorrem a cada passo na liturgia celeste descrita no Apocalipse e são sem dúvida, como que um “retrato cantado” das celebrações das comunidades joaninas.

A constância do canto de louvor na comunidade primitiva fica bem refletida na insistente recomendação de Paulo na generosa resposta das primeiras comunidades, que tão bem a concretizaram: “Juntos recitem salmos, hinos e cânticos inspirados, cantando e louvando ao Senhor de todo o coração. Agradeçam sempre a Deus Pai por todas as coisas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5, 19-20; cf Cl 3,16). Esta é uma regra neotestamentária para o canto e a música.

É curioso perceber que, na Igreja primitiva, há uma preponderância da música vocal, da palavra e do ensino da música instrumental. Não há o suporte de instrumentos aos salmos, uma ruptura completa com o paganismo, cujo uso dos instrumentos adornava os cultos idolátricos. Por essa razão, o fato de se falar em instrumentos estava muito mais ligado ao templo escatológico e à dimensão unicamente espiritual dos fiéis.

A música litúrgica na Igreja dos primeiros séculos

No ano 112 da era cristã, um autor latino, Plinio, o Jovem, em sua famosa Carta ao Imperador Trajano, assim se expressava a respeito dos cristãos: “Eles se reúnem antes do amanhecer e cantam a Cristo, a quem consideram como deus.” Em meados do século II, Justino, Mártir (+165), em sua apologia dirigida ao Imperador Antonino Pio, sublinha a excelência do louvor e do canto dos cristãos, comparados aos sacrificios pagãos.

Mais adiante, lá pelo final do século III, início do IV, Eusébio de Cesaréia (+339), comentando os salmos, dá conta de que, “através do mundo inteiro, em todas as Igrejas de Deus, tanto nas cidades como no interior e no campo, os povos de Cristo, reunidos de todas as gentes, cantam hinos e salmos (..) ao único Deus anunciado pelos profetas, em alta voz, de tal maneira que o som do canto pode ser escutado até por aqueles que estão fora do templo”.

E como é edificante escutar João Crisóstomo (+407), em homilia na igreja de Santo Irineu, em Constantinopla, exaltar a nobreza dos cristãos a transparecer do próprio canto unânime da assembléia: “O salmo que acabamos de cantar fundiu as vozes e fez subir um só canto, plenamente harmonioso: jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e homens, escravos e livres, todos não usaram senão de única voz. (..) Juntos, não formamos senão um coro, numa total igualdade de direito e de expressão, pelo que a terra imita o céu. Tal é a nobreza da Igreja”.

Mas é sobretudo em Milão, com o Santo Bispo Ambrósio (+397), e a seguir em Hipona, norte da África, com seu discípulo Agostinho (+ 430), que nós vamos conhecer, quem sabe, um primeiro ensaio de Pastoral da música litúrgica. Segundo Santo Agostinho, poucas coisas são tão próprias para estimular a piedade nas almas e inflamá-las com o fogo do amor divino como o canto. Dos seis primeiros séculos da nossa Igreja, época marcada pela atuação dos chamados Pais e Mães da Igreja, ou a época patrística, podemos afirmar, de modo geral, que o canto litúrgico é exaltado com inumeráveis referências bíblicas. E canto que reconhece e acolhe os valores humanos e psicológicos do cantar do povo: extravasamento saudável de emoções, comunhão de sentimentos e ideais, a alegria da festa. Os Pais e Mães da Igreja põem em evidência os valores celebrativos do reunir-se em coro para cantar: serviço da Palavra, unanimidade que manifesta a unidade em Cristo, sacrificio espiritual, profecia do reino, comunhão com os coros dos anjos e antecipação escatológica. Algo que nos parece muito atual é o fato de os Pais e Mães da Igreja falarem da música com uma visão ampla e articulada, acolhendo as diversas experiências existentes, numa prática celebrativa não distante da vida do povo e ainda não encurralada por regras ou normas intocáveis, como mais adiante acontecerá. As formas musicais desenvolvidas nesse período foram a salmodia e os hinos.

Para São Basílio (+379), no salmo, a melodia é uma espécie de mel que Deus juntou ao medicamento (as suas palavras), para torná-lo mais fácil de tomar.

O canto gera comunhão e harmoniza as diferenças: “restabelece a amizade, reúne os que estavam desavindos, converte em amigos os que mutuamente se hostilizavam. Quem será ainda capaz de considerar como inimigo aquele a quem elevou uma só voz para Deus?” (Basílio de Cesaréia)

No Pseudo-Dionísio encontramos também um ensinamento que diz que o canto põe os seres em sintonia, formando uma só assembléia de santos, onde o uníssono das vozes reflete nos corações. Gregório de Nazianzo diz que o canto dos salmos converte as horas em momentos de verdadeiro prazer espiritual. E Atanásio diz que este é um instrumento de conversão e elevação espiritual.

Nos séculos IV e V, época áurea da Igreja, surgem as “Scholae cantorum”. Até aqui, em cada ambiente eclesial consolida-se um mundo celebrativo próprio, em sintonia com a cultura local sempre aberto ao intercâmbio com experiências mais diversas. É o triunfo do pluralismo litúrgico-musical ainda aceito e respeitado pela Igreja de Roma. Um outro fator determinante de dinamismo foram a expansão missionária e o florescimento monástico.

No entanto, com o passar do tempo, nota-se que algo essencial vai sendo deixado de lado: a participação e envolvimento da assembléia. Vai se aprimorando a especialização teológico-bíblica dos compiladores de textos, a gestualidade dos ministros, a afinação dos membros das “scholae”. Cultura e música elitistas passam a ocupar e dominar o espaço do litúrgico, em detrimento da participação do povo.


Formação Litúrgica: Música Litúrgica I

Introduzindo: O drama da música nas celebrações

Partimos do pressuposto de que um fiel vai às celebrações em sua comunidade. Lá, além dele, participar, ainda que calado, da própria celebração, ele “assiste” àquilo que outros, de acordo com suas funções na comunidade, prepararam bem ou mal. Sendo assim, está formada a situação-problema muito comum em nossas comunidades, desde a menor até a maior e mais rica, desde a menos até a mais evoluída.
O que acontece, em geral, é que muitos vão à igreja para ver algo bonito, atraente, que pode até “tocar no íntimo” da pessoa e nada mais. Muitas vezes, há exageros de todo tipo e não há um culpado. Os responsáveis pela comunidade e pelo canto têm pouca formação litúrgica e musical. O povo, querendo satisfazer seu hedonismo, se esquece de todo o contexto em que a própria liturgia está inserida. Infelizmente, a celebração litúrgica tornou-se o lugar do espetáculo, muitas vezes barulhento e pobre teologicamente.
Qual seria então a causa de tal problema? Primeiro, a dificuldade na escolha de cantos adequados, pois, além do repertório, embora vasto, ser pouco conhecido, há pouca formação musical. Em segundo lugar, a preparação dos cantos às vezes fica prejudicada pela pressa e descompromisso. Há também o problema da escolha de cantos inadequados, cujo conteúdo, letra e ritmo não condizem com as celebrações. Por fim – e mais grave – há o problema do narcisismo. Na celebração há lugar para todos. Não é o espaço para que um apareça mais que outro, mas sim de todos assumirem seu papel ministerial.
Como pano de fundo, percebemos que o maior dos problemas está na falta de preparo. A formação e a dedicação são fundamentais na vida do músico e do cantor litúrgico. A assembléia que participar da ação litúrgica rica e bem preparada assimilará o seu conteúdo e compreenderá o mistério celebrado e sua beleza.
Nos últimos anos, temos assistido à cópia de um modelo gospel de música litúrgica. Trata-se de um estilo de música de origem protestante belo e com características peculiares que prezam pela espontaneidade do cantor e da assembléia. Dependendo do texto, alguma dessas músicas pode até caber em algum momento celebrativo. Porém, não é um canto da Igreja. Pode ser cantado entre nós católicos em eventos e shows de evangelização, mas quase nunca pode ser na liturgia.
Depois do Concílio Vaticano II houve uma flexibilização quanto ao canto e aos instrumentos na Igreja. Podemos hoje assimilar o que há de melhor na cultura musical do nosso povo. Podemos utilizar os recursos instrumentais sem medo de profanar a sagrada liturgia.
Para que desempenhemos bem o ministério da música na Igreja, um resgate histórico contribui muito com nosso trabalho. E a formação litúrgica e musical é imprescindível. (SC 115) desta forma, o povo de Deus pode externar de modo sublime o que é ser Igreja, celebrando e cantando, pois a música e a ação litúrgica estão de tal modo interligadas ao ponto de não haver serva da liturgia e sim elementos fundamentais de todo o mistério celebrado.


domingo, 5 de dezembro de 2010

Novena de Natal terá início no dia 11 de dezembro


No próximo dia 11, nossa paróquia dará início à novena de Natal. Trata-se de um importante momento na vida de nossas comunidades que refletirão em pequenos grupos sobre o tema proposto por nossa Arquidiocese para o período do Natal. Neste ano, os grupos vão refletir sobre o Pai Nosso. Costumamos chamar as pessoas não somente para refletir em grupos, mas, sobretudo para rezar. Não há tema melhor para a novena do que a oração ensinada por Jesus. E nossa Arquidiocese vem trazendo temas que dêem a devida formação às pessoas de nossas comunidades. Trata-se de uma nova catequese, onde todos se preparam devidamente para assumir seus compromissos mediante a sua comunidade. Este ano, mais uma vez, vamos encerrar todos juntos na igreja Matriz. No ano passado, a proposta do padre Luiz Martins foi acolhida por todos e a celebração eucarística de encerramento foi maravilhosa! Além disso, a partilha feita ao final aumentou alinda mais o clima de confraternização. Que neste ano participemos com entusiasmo deste momento importante a fim de dar um novo ânimo à nossa fé e fazermos presente em nós o Reino de Deus.


Advento: preparemos nossos corações!


Fim de ano. Tempo diferente, propício para revisões de vidas. Tempo de transformação, de jogar fora o que de ruim ficou em nossa vida durante o ano que já é velho. É hora de ver nascer de novo em nós o Menino Jesus, pobre, humilde, frágil, deitado na nossa manjedoura, o lugar aonde os animais vêm se alimentar. Este é o Natal de Jesus que está chegando, quanto mais simples, melhor, o que não deixa de ser solene. Nas nossas igrejas acendemos velas que nos lembram passos a serem seguidos para chegarmos a Jesus e lembramos que ele virá mais uma vez.

Infelizmente, não é esta a realidade do mundo. Nas ruas, shoppings, lojas e até em muitas de nossas casas esquecemos de dar lugar ao personagem principal. Enchemos nossos ambientes de símbolos pagãos e nos esquecemos que esta festa é cristã. Gastamos nosso dinheiro, muitas vezes suado, em presentes de valor e sem valor. É o consumismo do tempo do Natal. Se Jesus nascesse hoje encontraria outras faces do poder que ele mesmo combateu em seu tempo e em sua terra.

Nós cristãos somos chamados a uma renovação espiritual. O Advento nos prepara para a festa litúrgica da encarnação do Verbo de Deus. Prepara-nos também para a volta de Cristo, a fim de que nosso espírito esteja sempre pronto. A nós é exigido maior compromisso. Nós devemos fugir do que é mal e nos aproximarmos de Jesus. Conosco deve ir mais alguém a fim de que a voz do profeta seja a nossa voz.

Deixemo-nos, então, envolver com o espírito do Natal. Que neste Advento, nossas casas se iluminem aos poucos e nosso presépio seja montado com cuidado, pois é o Rei que está chegando.



Pedagogia litúrgica - mês de abril de 2011

Abril pode ser definido como o grande “mês pascal” da Liturgia. Na realidade todos os meses celebram o dom da Páscoa, mas este se faz mais evidente, porque nele torna-se palpável a passagem da vida divina em nossas celebrações e em nossas vidas. É assim com Jesus passando e iluminando nossas cegueiras (4DQ), é assim com Jesus derrotando a morte em Lázaro para que faça sua Páscoa, saindo da morte para voltar a viver (5DQ).

Esta característica pascal se manifesta na alegria da “Dominica laetare”, que exulta de alegria pela proximidade da Páscoa de Jesus Cristo (4DQ). Exultação de alegria manifestada na simbologia da luz de Jesus Cristo, capaz de iluminar a escuridão de olhos cegos para se viver na verdade do Evangelho, correspondendo à vocação cristã de se deixar iluminar pelo Evangelho. A cura do cego nato demonstra como Jesus ilumina a vida do batizado e promove nele a graça de participar da nova criação, propondo-lhe um novo estilo de viver (4DQ), revestindo-nos com a veste da vida divina, oferecida pelo próprio Jesus Cristo, para não compactuarmos com a cultura da morte, mas sempre com a promoção da vida (5DQ). O cristão não é um monte de ossos ressequidos, pois seu corpo é morada do Espírito de Deus, quer dizer, do Espírito que enche a vida humana com a vida divina. O cristão que se faz discípulo de Jesus não vive em sepulturas, mas na festa da vida (5DQ).

Diante da Cruz

Um bom modo de viver a Semana Santa é colocar-nos diante da Cruz de Jesus Cristo. No momento da crucifixão, três grupos de pessoas passaram diante da Cruz: aquele povão, que buscava um pop-star, mas se decepcionou quando o viu fazendo a vontade do Pai, os intelectuais com uma cultura incapaz de compreender a lógica divina, e os malfeitores, que foram crucificados com Jesus, um de cada lado. Em qual destes grupos você se identificaria, hoje. A resposta só pode ser dada depois de refletir profundamente como você vive a vida cristã, se próximo ou distante de Deus. Mas, existem outros convites para se entrar bem na Semana Santa. Jesus, por exemplo, passou aquela Semana marcada pelo sofrimento fortalecendo-se na certeza que voltava ao Pai. É com este espírito que ensina o caminho através do serviço, pelo gesto do lava-pés. Um gesto de serviço, que não nos deixa desanimar diante da visão da Cruz. Mesmo assim, é preciso reconhecer que perguntas e questionamentos jamais cessaram (nem cessarão) diante do sofrimento; de todas as formas de sofrimento. De algum modo, todos beberemos (alguns irmãos e irmãs bebem) deste cálice tão amargo para a humanidade. Diante desta Cálice, que Jesus pede para ser afastado, é possível presenciar em Jesus a sede de fazer a vontade do Pai. O cálice da vontade do Pai é mais importante que o medo do cálice do sofrimento e da morte. O Pai reconhece o amor de Jesus, aceita seu sacrifício e o livra da morte, ressuscitando-o.

Diante da Ressurreição

A força da Páscoa não se esconde somente no fato histórico, acontecido em Jesus Cristo. Mais que uma realidade histórica, é também uma realidade que aconteceu na vida de Jesus Cristo: ele morreu e o Pai o ressuscitou. É também uma realidade que se atualiza em nossos dias, nos sacramentos celebrados na Igreja, através do testemunho vivo dos discípulos de Jesus, na promoção da vida onde a humanidade (de hoje) esquece ou tenta afastar Deus da sua história.

A Ressurreição de Jesus traz uma realidade nova para o mundo: nós podemos participar da vida divina, porque pela Ressurreição de Jesus o mundo de Deus entrou definitivamente no mundo humano. O modo como participamos da vida divina é semelhante ao fermento que leveda a massa do pão: é uma experiência interior, que faz crescer o amor e a fé dentro de quem se torna discípulo amado de Jesus. Este não exige muitas provas porque é capaz de ler na simplicidade dos sinais a passagem divina.

Formação Litúrgica

Ministério de Leitores

A Liturgia da Palavra é uma celebração. É necessário, pois, que se note que celebramos a Palavra, como depois celebramos a Eucaristia.

Assim, não é nem um momento de leituras atropeladas que se colocam antes da homilia e da celebração eucarística; nem uma reunião de instrução ou de discussão que, depois, concluirá com os ritos eucarísticos (que ficarão, assim, desvalorizados, porque não são tão "instrutivos").

O serviço do leitor é muito importante dentro da assembléia. Os que o realizam devem estar conscientes disso e viver a alegria e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de ser os que tornarão possível que a assembléia receba e celebre aquela Palavra com a qual Deus fala aos seus fiéis, aqueles textos que são como que textos constituintes da fé.

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